segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Impressões: Silo, de Hugh Howey


Minhas impressões sobre Silo, de Hugh Howey:



Em uma paisagem destruída e hostil, em um futuro ao qual poucos tiveram o azar de sobreviver, uma comunidade resiste, confinada em um gigantesco silo subterrâneo.
Lá dentro, mulheres e homens vivem enclausurados, sob regulamentos estritos, cercados por segredos e mentiras.
Para continuar ali, eles precisam seguir as regras, mas há quem se recuse a fazer isso. Essas pessoas são as que ousam sonhar e ter esperança, e que contagiam os outros com seu otimismo.
Um crime cuja punição é simples e mortal.
Elas são levadas para o lado de fora.
Juliette é uma dessas pessoas.
E talvez seja a última.


Em Silo acompanhamos a vida de uma micro-sociedade dentro de um bunker, morando há centenas de anos na estrutura autossuficiente sem saber realmente o que existe (ou se há qualquer coisa) no exterior. Após alguns eventos que exigem uma reestruturação dos cabeças, Juliette, uma moradora dos níveis mais baixos do silo acaba ocupando um dos cargos e descobrindo verdades perigosas sobre o que se passa na alta cúpula. Para ser silenciada, é enviada para o exterior - a sentença de morte - não sem antes plantar em alguns cidadãos a semente da desconfiança sobre aqueles que os governam.

Alguns elementos da narrativa relacionados a ciências aplicadas chamam atenção para o nível de precisão empregado, o que enriquece a leitura, mas no geral é uma história contada de modo lento, de progressão enfadonha e um uso duvidoso de poesia.


“'O volante que abre a porta não gira', ouviu em algum recôndito de sua mente. 'É uma porca emperrada.'”


Acima temos uso inteligente das porcas emperradas, uma analogia coerente que reforça a personagem e situa o leitor sobre o que ocorre, porém a mesma figura simbólica é usada em várias ocasiões, deixando a impressão de que Juliette só pensa em porcas e parafusos, até quando se depara com corpos humanos. Duas repetições marcantes são o som das pisadas de botas nos degraus da escadaria e o frio do corrimão; imagens recorrentes demais, que surgem quase sempre que a escadaria que une os andares do silo entra em cena. Outros empregos esquisitos aparecem na narrativa, demonstrando pobreza de vocabulário ou, pelo menos, má tradução:


"Os dois partiram apenas com uma faca, que Juliette tinha muita sorte de ainda ter. Como o objeto sobrevivera ao mergulho nas profundezas da mecânica era um mistério."

"Ela avançou pela estufa, os galhos das plantas se tocavam no meio do caminho como se estivessem dando as mãos, e então chegou até a bomba de circulação."


As descrições são breves, mais voltadas para a ambientação, cheias de sensações e carentes de detalhes visuais. Mesmo os personagens principais quase não possuem características físicas. É uma maneira difícil de estabelecer personagens, mas Hugh Howey consegue com a maioria deles. Alguns secundários, no entanto, ficam livres para a imaginação do leitor criar do zero. No geral, a falta de descrições desemperra a leitura, muito densa por conta da narração, e alivia um pouco o texto.


"O quarto dele era aconchegante e de bom gosto, com apenas uma cama de casal, mas bem-arrumado. As fazendas superiores eram apenas um dos mais de dez grandes empreendimentos privados. Todas as despesas de sua hospedagem seriam cobertas pelo orçamento de viagens do gabinete dela, e aquele dinheiro, assim como o proveniente dos outros viajantes por alimentação e hospedagem, ajudava o estabelecimento a adquirir artigos de melhor qualidade, como os belos lençóis dos teares e colchões que não rangiam."


O trecho acima foi algo que quebrou minha visão do silo. Em realidade, o livro inteiro parece ser análogo à transição de socialismo estatal para comunismo utópico, ao menos quando se percebe que os segredos da ala da TI progressivamente caem por terra e o o enredo caminha para uma conscientização geral da população sobre o que é o silo e qual o papel de cada um para se manterem vivos num mundo em ruínas, cada qual empregando seu papel não por obrigação, mas por consideração comunitária ao bem de todos. E de repente surge esse sistema monetário que não tem explicação alguma, e ainda reforça o sistema de "castas" estabelecido pela posição geográfica dos andares do silo (quanto mais profundo é o andar, menos conforto é oferecido aos moradores). Excluindo isso, existe uma coerência muito grande na história, tanto de cenário quando na trama.


O que gostei:
- Muitos mistérios, e apresentados de maneira a instigar a leitura.
- O conceito do cenário.
- A ambientação.

O que não gostei:
- Muita repetição com algumas metáforas.
- Alguns personagens passam em branco, não têm nem descrição física.
- Ritmo lento.


Considerações finais:
Silo logrou sucesso em me fazer terminar um livro de ficção científica, mas não sem alguns percalços. A história é lenta e é difícil pegar todos os personagens secundários - que só ganham papel ativo mais para o final - mas a história é interessante e os diversos mistérios vão puxando o leitor pelas páginas, de forma que quase todo capítulo termina com um clifhanger. Vale a pena para quem busca uma ficção científica cheia de suspense.


Link para compra:

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

TRILOGIA: A LANÇA DOURADA


A Lança Dourada é uma trilogia de fantasia formada por 3 livros independentes: O homem sem signo, A pedra celestial e O desejo do sol. Com cada um se passando em uma época diferente, com personagens diferentes e tramas com início, meio e fim, todos compartilham o mesmo universo fantástico, que só pode ser realmente compreendido com a leitura de todos os volumes. No primeiro, a construção do mundo se dá em torno do mito de Sauza e os filhos do zodíaco, arautos do poder celeste, enviados por Sauza para cuidar de Maciaan. No segundo, a construção de mundo é feita a partir do mito da Ligeia e seus filhos, cuja influência atinge a distante ilha Namal-te-Raan. No terceiro livro, o encontro das duas crenças resulta na busca de uma salvação para Maciaan, ameaçada por uma força que permanece desconhecida para a população, mas que mostra seus sinais para uns poucos, privilegiados com poder celeste.

Além dos três livros (entre os quais há um dividido em dois volumes, o segundo ainda a ser lançado), há o conto A herança do Professor Duncan, que expande geograficamente Maciaan para os lados ocultos das Montanhas do Leste.



- Capas, informações e sinopses -



O homem sem signo (13 de dezembro de 2012)

Fantasia sombria, disponível em formato impresso com o autor e em ebook em AMAZON.

No mundo de Maciaan as pessoas crescem ouvindo lendas sobre centauros, gigantes e misteriosos monstros do mar. De todas as criaturas fantásticas, os mais perigosos são os filhos do zodíaco, humanos que carregam em suas costas a marca da constelação que guia suas ações. O pai de Amato é o filho de Capricórnio e carrega consigo uma terrível maldição. Em O homem sem signo, acompanhamos o crescimento de Amato e sua luta para quebrar a maldição do pai, que só pode ser desfeita com a morte dos outros onze filhos do zodíaco. Para encontrar os seus alvos, Amato precisará viajar para os lugares mais longínquos, lutar contra rebeldes, digladiar em arenas e provocar guerras entre reinos. A vontade do herói é posta à prova quando grandes amigos se revelam filhos do zodíaco, e a decisão de salvar o pai não parece mais tão correta. Mergulhe nesse mundo fantástico e descubra quem é o homem sem signo.



A pedra celestial (31 de dezembro de 2013)

Fantasia infanto juvenil, disponível em ebook em AMAZON.

Após anos do desaparecimento do homem sem signo, Ivan, um jovem errante que esconde seu passado, se une à tripulação do Capitão Balboa numa viagem marítima em busca de riquezas escondidas. Superando diversos obstáculos, a longa viagem finalmente leva os marinheiros até Namal-te-Raan, uma ilha misteriosa e tropical, cujos segredos são mais valiosos que qualquer moeda de ouro ou prata. Acompanhe Ivan na aventura que revelará toda a história de como o mundo foi privado do seu equilíbrio natural desde épocas imemoriais e descubra a importância e a razão da existência do maior de todos os enigmas: a Pedra Celestial.



O desejo do sol - Volume I (12 de fevereiro de 2016)
Amostra do livro
Resenhas


Fantasia adulta, disponível em ebook em AMAZON.

Quando um homem alado aparece no templo celeste do Cesaro, uma estranha profecia ameaça mudar para sempre a vida em Maciaan. Há décadas sem serem vistos, uma nova leva de caídos do céu surge, e Vasto, o filho de Áries, acredita ser o centro da mudança vaticinada. Sem recursos nem maneiras de ser levado a sério, ele parte em uma jornada para reunir os doze filhos do zodíaco e concretizar o seu destino. 
Em meio a intrigas políticas e viagens conturbadas, o mito de um herói nasce, mas qual é seu verdadeiro papel? A prometida salvação é o que todos desejam? Neste épico de fantasia, nem tudo é o que parece, e um homem sozinho precisará convencer todos de que é possível derrotar uma ameaça invisível e silenciosa de poder ancestral, se todos se unirem sob uma vontade superiora: o desejo do sol.



A herança do Professor Duncan (6 de julho de 2015)


Terror, disponível em ebook em AMAZON.

Daniel Monteiro narra, com ares de horror psicológico, a viagem de um jovem que parte numa busca perigosa para um destino desconhecido e vê sua sanidade se restringir à mais primordial e frágil emoção: a esperança. 
Um conto com inspiração na escrita de H. P. Lovecraft e ambientado em Maciaan, universo fantástico da trilogia A Lança Dourada.






sábado, 20 de fevereiro de 2016

Impressões: O mistério da estrela - Stardust, de Neil Gaiman


Lá vem ele: meu ídolo nos quadrinhos e minha montanha-russa literária, cheia de altos e baixos, Neil Gaiman! Estou decidido a aumentar o número de livros lidos do Gaiman, e no começo do ano peguei O mistério da estrela: Stardust para ler. Segue a capa e sinopse.




Tristran ama a jovem mais bela do vilarejo de Muralha. Para ser correspondido, ele atende aos caprichos da moça e lhe faz uma promessa quase impossível de cumprir. Uma estrela cadente que ambos vêem cair do céu valerá a mão de Vitória em casamento.
A determinação de trazer a estrela para o vilarejo fará com que o rapaz burle todas as regras e siga para a Terra Encantada, onde supostamente a estrela está. Então, Tristran se vê cercado por piratas voadores, gnomos guerreiros, bruxas esquisitas e sedentas por beleza e princesas do mal. Um mundo de magia está diante dele e tem início um conto de fadas surpreendente e nada convencional.
Neste lugar, os caminhos podem ser belos e sombrios, tristes e alegres, suspeitos e óbvios, mas sempre cheios de segredos. E todos, não só Tristran, estão em busca daquela que parece guardar a solução para todos os problemas do reino mágico. Acontece que a estrela está triste e sem esperança. O maior desafio do jovem apaixonado, então, será fazer a estrela brilhar novamente.

A leitura foi difícil, MUITO difícil. Eu cogitei abandonar o livro várias vezes porque não me sentia compelido a continuar. É até estranho constatar isso em uma obra com tantos lampejos de talento ímpar, mas apenas de natureza estilística. Gaiman é um escritor delicado, mestre em gerar símbolos na narrativa e tornar vívidas as emoções dos seus personagens, isso é inegável. A voz então, é talhada de maneira tão natural, que o texto dele se revela em dois, três parágrafos no máximo. Não há como se enganar sobre a autoria do que ele faz. Mas isso não tornou Stardust uma história boa. Porque todo o resto faltou.

A proposta do livro é ser um conto de fadas para pessoas adultas, e com conhecimento disso, é até possível entender certos aspectos da narrativa, mas é imperdoável precisar sabê-lo para que o enredo se sustente. Quando não se aceita a proposta como muleta, os referidos "aspectos" se mostram verdadeiros defeitos, barreiras, enfim, INCÔMODOS que persistem do início até a última página. Informações soltas, caprichos, personalidades incompatíveis, tudo isso e um pouco mais será visto em Stardust, muito bem amarrado por construções frasais belíssimas e caracterizações que transbordam expertise de um veterano das letras.

"Vaza de Scaithe é um pequeno porto marítimo, construído sobre granito, uma cidade de carpinteiros, fabricantes de velas de cera e de velas para embarcações; de velhos marujos com membros e dedos faltando que abriram tabernas próprias ou que passam o dia nelas, com o que restou de seu cabelo ainda preso com breu em rabos compridos, mesmo que a barba por fazer em seu queixo já há muito esteja salpicada de branco. Não há prostitutas em Vaza de Scaithe, ou não há nenhuma mulher que se considere prostituta, apesar de sempre ter havido muitas que, sob pressão, se descreveriam como muito bem casadas, com um marido neste navio que pára aqui de seis em seis meses e outro naquele outro navio que volta ao porto por cerca de um mês, de nove em nove meses."

Acima são palpáveis alguns elementos que corroboram a minha reclamação, bem como meus elogios. Em um parágrafo de descrição de cenário, podemos dizer que conhecemos Vaza de Scaithe, porque a mensagem mexe conosco e com o que conhecemos da nossa vida pessoal; ao mesmo tempo, numa leitura mais analítica, o leitor também conclui que a descrição de Vaza de Scaithe é absolutamente NULA. Tudo que se forma na mente sobre o local se dá através de emoções e preconceitos gerados pela simbologia do parágrafo. Quase nada é dito, não há definição na descrição do cenário.

"— Para dizer a verdade — disse Tristran —, espero passar o resto de minha vida como criador de ovelhas no lugarejo de Muralha, porque me parece que já passei por todas as emoções de que um homem poderia precisar, seja pelo acontecido com velas e árvores, seja pela moça e pelo unicórnio. Mas aceito o convite com o mesmo espírito com que foi feito e sou grato por ele. Se você algum dia chegar a visitar Muralha, deverá ir à minha casa, e eu lhe darei roupas de lã, queijo de ovelha e todo o ensopado de carneiro que conseguir comer."

Essa fala eu precisava deixar aqui. Exemplifica toda a minha irritação com os diálogos do livro. Não é como os roteiros de Malhação do Brandon Sanderson, se assemelha mais à estrutura de diálogo usada muito por Dostoiévski; isso é bom? Depende do leitor, mas certamente não é o adequado. O discurso extrapola sinteticamente a sua função, fazendo o papel de inciso, uma técnica avançada e que exige muita perícia. E Gaiman faz corretamente o uso no texto, QUE INFELIZMENTE NÃO SE AJUSTA AO LOCUTOR. Tristran não tem a determinação, o background ou sequer passa a impressão de ser o tipo de gente que se expressaria de tal forma. A naturalidade se perde, e mais um choque se dá durante a leitura.

"Cuidado onde pisa, cuidado onde pisa — repetiam as gotas de chuva ao bater na pedra. O unicórnio parou a cinqüenta passos da estalagem e se recusou a se aproximar mais. A porta da frente estava aberta, inundando o mundo cinzento com sua aconchegante luz amarela."

Acima, uma das passagens do livro que me seguraram - os trechos de construção coerente, narrativa simples e simbologia forte. Três linhas que valem mais que muito curso de escrita por aí. Detalhes como esse, proporcionados por destreza com as palavras, e não por aspirações narrativas, não fizeram o livro cair na lista de abandonados.

"Ali havia uma série de rostos que Tristran reconheceu, e as pessoas o cumprimentaram em silêncio, ou sorriram, ou não sorriram, à medida que ele atravessava a multidão e subia pela escada estreita por trás do balcão até o patamar, com Louisa sempre a seu lado. As tábuas rangiam sob seus pés. Louisa lançou sobre ele um olhar penetrante. E então seus lábios tremeram. E, para surpresa de Tristran, ela o enlaçou e o abraçou com tanta força que ele não conseguia respirar. Depois, sem dizer mais uma palavra, ela desceu correndo a escada de madeira."

O exemplo mais perfeito que achei de narrativa dissonante. As informações mais jogadas que pedras em doido varrido, em suas frases curtas e diretas, mas que possuem efetividade justamente pelas sensações que as mesmas invocam. Rostos reconhecidos, cumprimentos em silêncio, multidão, escada estreita, tábuas rangindo, olhares penetrantes e lábios tremidos. Uma coisa sustenta a outra, mas não se compensam, justamente pelos efeitos contrastantes. Normalmente essa é uma técnica de introdução, e de uso breve, mas ele a usa para um desfecho (anti-climático, ainda por cima!). Eu quero muito acreditar que o "sem dizer mais uma palavra" tem o segundo sentido de referenciar o próprio narrador quanto ao parágrafo, pois eu posso pelo menos aceitar isso como uma sacanagem cômica/literária.

Eu não vou elencar os pontos positivos e negativos do livro porque não estou encarando o post como recomendação (ou não) do livro, é mais um registro pessoal da minha experiência para futura consulta. Então vou encerrar de repente o meu texto, para dar uma de Neil Gaiman na época que escreveu essa aberração.





PS: Tive raiva também quando o safado encerrou com uma conversinha compreensiva a perseguição da vilã sanguinária aos heróis, mesmo depois de todo o ocorrido, mas pelo menos, a esta altura do livro, houve a jogadinha da "união dos domingos" para dar um toque de inteligência à trama. Já que a vontade de Gaiman era misturar o mundo adulto com o infantil nesse conto de fadas provocativo... Bom, ele teve sucesso: a dicotomia ficou evidente, ficou GRITANTE.




sábado, 13 de fevereiro de 2016

Abandonei: Garota exemplar, de Gillian Flynn





O primeiro abandono de 2016 é do premiado livro que virou filme hollywodiano e encheu as cadeiras dos cinemas. Não tenho muito a dizer; é um livro bom, mas que não gerou interesse em mim, que já tinha visto o final da história através do filme. Parei em 43% do ebook, a narrativa é fluída, em primeira pessoa no passado, tanto para Nick quanto para Amy, embora no caso dela, haja algumas liberdades textuais pela narração ser passada por um diário (coisas como tópicos numerados aparecem, como se escritas numa página de caderninho mesmo). O mérito do livro está na mudança de voz, que é esplêndida! Cada personagem é caracterizado pela sua fala, seja na narração dos dois ou nos diálogos. Acabei pegando raiva dos personagens; Nick desde o início se revela um bundão sem graça e com pouca atitude, dando um papel mais ativo à Amy, mas com a progressão do livro fica claro que ambos são apenas crianças mimadas que querem ser o centro do relacionamento e não estão dispostos a dar o braço a torcer. Outra coisa que notei é uma particularidade na escrita que muito me deixa incomodado e que por puro preconceito (e por não saber explicar melhor) digo que é a voz novaiorquina da literatura. Preconceito porque não sei nada sobre a autora, mas tive a mesma sensação quando li (fui obrigado) Comer, Rezar, Amar, de Elizabeth Gilbert.
É, fico com o filme.



terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Impressões: O andarilho das sombras, de Eduardo Kasse

A segunda leitura do ano é cruel e sanguinolenta: O andarilho das sombras, do autor Eduardo Kasse. Vamos à capa e sinopse:





No romance O Andarilho das Sombras, primeiro volume da série Tempos de Sangue, Eduardo Kasse conta uma história instigante de como escolhas e uma promessa maliciosa criaram um grande mal.
Para salvar a vida de quem amava, Harold Stonecross sacrificou sua alma em um jogo de poder entre deuses decadentes e se tornou um demônio em busca de sangue.
Nesta fantasia sombria, entre lendas esquecidas, dogmas e mitos, Harold narra passagens de sua longa existência, repletas de conexões com tempos imemoriais, enquanto caminha pelas ruelas escuras e imundas da Europa da Idade das Trevas.
Sedutor e fatal, Harold fez do mundo o seu palco. Em sua atuação, a História escrita pelos homens confunde-se com as histórias de terror contadas pelos mais velhos. Nobres, sacerdotes, homens comuns, não importa: sempre haverá um rastro de sangue após as cortinas baixarem.


A sinopse é bem temática, e o pouco da trama que ela revela é condizente com a história do livro, apesar de ser só um raspão na longa jornada de Harold Stonecross. A verdade é que acompanhamos as vidas de dois Harolds, um é o vampiro de características clássicas, sustentadas pelos pilares do mito original, o outro é um humano comum, que cresce, teme, chora, ri e vive como todos os outros. As narrativas são contadas de maneira linear, entrelaçadas por sutis mudanças de espaço e tempo, e acaba sendo um bom exercício de percepção para o leitor; seguir o rastro de sangue de Harold se torna mais divertido quando temos os flashbacks mostrando o crescimento do esperançoso Harry. A seguir deixo um exemplo de retomada da linha de tempo do vampiro, após uma seção contando parte da vida do garoto Harry:

"Cavalguei por algumas milhas e longe no horizonte surgiu uma muralha de terra e de pedra. Cidades muradas costumavam ter boas casas para se alugar ou mesmo para comprar. Depois de dormir em uma carroça e em uma cabana, ter algo mais sólido seria ótimo."

Para ajudar o leitor, o parágrafo informa que antes da interrupção houve longa cavalgada e que Harold dormiu em uma carroça e depois em uma cabana, o que é suficiente para lembrar o leitor em que pé estava a história.

A narração é em primeira pessoa e as duas linhas de tempo são narradas no passado, o que gerou algumas dúvidas na minha leitura, como por exemplo a ampla percepção do narrador aos eventos que ocorrem ao redor de si, mesmo quando ele ainda não era um vampiro com sentidos super aguçados, mas nada que atrapalhe a coerência da história ou fluidez do texto. As cenas são muito longas, no geral, e OADS não é um livro para se ler picotado em viagens de ônibus ou metrô, exige dedicação e tempo livre, mesmo a quem decide ler um capítulo por vez. Isso se deve ao tamanho da história, mas também ao belíssimo trabalho descritivo, que não é massante, porém repito: é quase sempre longo. Um exemplo simples de como um parágrafo sucinto de Eduardo Kasse pode explicar muita coisa:

"Os quatro garotos correram sem olhar para trás, escorregando nas ruas cobertas pelo barro úmido devido ao dia chuvoso. Ao chegar à frente do torreão da face leste da muralha, Edgar e o garoto de nariz torto seguiram para um beco ao lado da taverna St. Mary. O gorducho, com passos curtos e pesados, entrou em uma velha casa nos fundos de uma pequena igreja de pedra e madeira, dedicada a São Eduíno."

Como o texto mostra, a linguagem de Eduardo é direta e sem firulas rebuscadas, uma boa escolha para dar agilidade a textos densos. Nem por isso ele exclui a linguagem figurada, e às vezes nos deparamos com belas passagens, como a seguir:

"Se cada lágrima chegar ao céu, esse já virou um mar."

Os personagens dão o tom na narrativa, se estamos com Harold, as sombras e a perdição noturna domina, se estamos ao lado de Harry, há mais aventura e indecisão; mas, em ambos os casos, predomina o exagero e as grandes expressões na delineação de personagens. A sensualidade transborda, o medo engole, a feiura enoja, a beleza enaltece. Tudo é puxado ao máximo nas características, e se o leitor não percebe isso de imediato, pode ficar frustrado mais para frente com a caracterização, e achar até estereotipado. É importante ver também que mesmo a fase de Harry é narrada pelo Harold que sucumbiu, então nem os momentos amenos do livro dispersam a atmosfera negativa que o vampiro nos impõe. A impressão que fica é estar lendo algo inspirada na segunda geração romântica da literatura brasileira.

Apesar das longas passagens, eu não via como criticar o ritmo até chegar na metade da leitura. Foi o ponto em que já estava cansado de acompanhar o vampiro insosso que nada teme e sofre além da própria lamentação pela imortalidade. Para minha sorte, o jovem Harry aparece mais na segunda metade do livro e não precisei dar um tempo na leitura, mas, ainda assim, me cansava ao ver novamente menções a coração imortal e seios intumescidos de jovens vítimas. Ficou muito repetitivo e modorrento acompanhar o vampiro Harold, e só bem no final do livro é que a linha do tempo dele retoma algum brilho (talvez tarde demais).

O que gostei:
-Linguagem que prende o leitor.
-Ótimas descrições.
-As linhas de tempo intercaladas foram bem estruturadas.
-Gostei da grande quantidade de personagens e do papel deles no enredo.
-A ambientação é o ponto forte do livro. Para quem gosta de vampiros tradicionais, é uma leitura recomendada.

O que não gostei:
-A vida de Harold enquanto vampiro se torna desinteressante.
-A visão negativa de Harold impregnou a narração da linha de tempo pré-renascimento, deixando os momentos divertidos do livro com uma pontinha de chatice.
-A unidimensionalidade  da maioria de personagens é quase que aplicada a classes. Todo o clero é corrupto, todo camponês é simplório, toda mulher é uma presa sensual para Harold. Entendo a função disso na trama, mas gerou previsibilidade.
-Deus Ex Machina ABSURDO  no final do livro para salvar o herói que não é herói coisa nenhuma.

Considerações finais:
Com um trabalho literário excepcionalmente bem feito, mas que se alongou demais e se repetiu algumas vezes, Eduardo Kasse inicia sua saga vampírica de forma densa. O andarilho das sombras é fruto de um trabalho lapidado e traça uma linha reta mostrando o que é e para onde vai; quem se identifica com a direção, poderá ler sem medo de se decepcionar.