sábado, 20 de fevereiro de 2016

Impressões: O mistério da estrela - Stardust, de Neil Gaiman


Lá vem ele: meu ídolo nos quadrinhos e minha montanha-russa literária, cheia de altos e baixos, Neil Gaiman! Estou decidido a aumentar o número de livros lidos do Gaiman, e no começo do ano peguei O mistério da estrela: Stardust para ler. Segue a capa e sinopse.




Tristran ama a jovem mais bela do vilarejo de Muralha. Para ser correspondido, ele atende aos caprichos da moça e lhe faz uma promessa quase impossível de cumprir. Uma estrela cadente que ambos vêem cair do céu valerá a mão de Vitória em casamento.
A determinação de trazer a estrela para o vilarejo fará com que o rapaz burle todas as regras e siga para a Terra Encantada, onde supostamente a estrela está. Então, Tristran se vê cercado por piratas voadores, gnomos guerreiros, bruxas esquisitas e sedentas por beleza e princesas do mal. Um mundo de magia está diante dele e tem início um conto de fadas surpreendente e nada convencional.
Neste lugar, os caminhos podem ser belos e sombrios, tristes e alegres, suspeitos e óbvios, mas sempre cheios de segredos. E todos, não só Tristran, estão em busca daquela que parece guardar a solução para todos os problemas do reino mágico. Acontece que a estrela está triste e sem esperança. O maior desafio do jovem apaixonado, então, será fazer a estrela brilhar novamente.

A leitura foi difícil, MUITO difícil. Eu cogitei abandonar o livro várias vezes porque não me sentia compelido a continuar. É até estranho constatar isso em uma obra com tantos lampejos de talento ímpar, mas apenas de natureza estilística. Gaiman é um escritor delicado, mestre em gerar símbolos na narrativa e tornar vívidas as emoções dos seus personagens, isso é inegável. A voz então, é talhada de maneira tão natural, que o texto dele se revela em dois, três parágrafos no máximo. Não há como se enganar sobre a autoria do que ele faz. Mas isso não tornou Stardust uma história boa. Porque todo o resto faltou.

A proposta do livro é ser um conto de fadas para pessoas adultas, e com conhecimento disso, é até possível entender certos aspectos da narrativa, mas é imperdoável precisar sabê-lo para que o enredo se sustente. Quando não se aceita a proposta como muleta, os referidos "aspectos" se mostram verdadeiros defeitos, barreiras, enfim, INCÔMODOS que persistem do início até a última página. Informações soltas, caprichos, personalidades incompatíveis, tudo isso e um pouco mais será visto em Stardust, muito bem amarrado por construções frasais belíssimas e caracterizações que transbordam expertise de um veterano das letras.

"Vaza de Scaithe é um pequeno porto marítimo, construído sobre granito, uma cidade de carpinteiros, fabricantes de velas de cera e de velas para embarcações; de velhos marujos com membros e dedos faltando que abriram tabernas próprias ou que passam o dia nelas, com o que restou de seu cabelo ainda preso com breu em rabos compridos, mesmo que a barba por fazer em seu queixo já há muito esteja salpicada de branco. Não há prostitutas em Vaza de Scaithe, ou não há nenhuma mulher que se considere prostituta, apesar de sempre ter havido muitas que, sob pressão, se descreveriam como muito bem casadas, com um marido neste navio que pára aqui de seis em seis meses e outro naquele outro navio que volta ao porto por cerca de um mês, de nove em nove meses."

Acima são palpáveis alguns elementos que corroboram a minha reclamação, bem como meus elogios. Em um parágrafo de descrição de cenário, podemos dizer que conhecemos Vaza de Scaithe, porque a mensagem mexe conosco e com o que conhecemos da nossa vida pessoal; ao mesmo tempo, numa leitura mais analítica, o leitor também conclui que a descrição de Vaza de Scaithe é absolutamente NULA. Tudo que se forma na mente sobre o local se dá através de emoções e preconceitos gerados pela simbologia do parágrafo. Quase nada é dito, não há definição na descrição do cenário.

"— Para dizer a verdade — disse Tristran —, espero passar o resto de minha vida como criador de ovelhas no lugarejo de Muralha, porque me parece que já passei por todas as emoções de que um homem poderia precisar, seja pelo acontecido com velas e árvores, seja pela moça e pelo unicórnio. Mas aceito o convite com o mesmo espírito com que foi feito e sou grato por ele. Se você algum dia chegar a visitar Muralha, deverá ir à minha casa, e eu lhe darei roupas de lã, queijo de ovelha e todo o ensopado de carneiro que conseguir comer."

Essa fala eu precisava deixar aqui. Exemplifica toda a minha irritação com os diálogos do livro. Não é como os roteiros de Malhação do Brandon Sanderson, se assemelha mais à estrutura de diálogo usada muito por Dostoiévski; isso é bom? Depende do leitor, mas certamente não é o adequado. O discurso extrapola sinteticamente a sua função, fazendo o papel de inciso, uma técnica avançada e que exige muita perícia. E Gaiman faz corretamente o uso no texto, QUE INFELIZMENTE NÃO SE AJUSTA AO LOCUTOR. Tristran não tem a determinação, o background ou sequer passa a impressão de ser o tipo de gente que se expressaria de tal forma. A naturalidade se perde, e mais um choque se dá durante a leitura.

"Cuidado onde pisa, cuidado onde pisa — repetiam as gotas de chuva ao bater na pedra. O unicórnio parou a cinqüenta passos da estalagem e se recusou a se aproximar mais. A porta da frente estava aberta, inundando o mundo cinzento com sua aconchegante luz amarela."

Acima, uma das passagens do livro que me seguraram - os trechos de construção coerente, narrativa simples e simbologia forte. Três linhas que valem mais que muito curso de escrita por aí. Detalhes como esse, proporcionados por destreza com as palavras, e não por aspirações narrativas, não fizeram o livro cair na lista de abandonados.

"Ali havia uma série de rostos que Tristran reconheceu, e as pessoas o cumprimentaram em silêncio, ou sorriram, ou não sorriram, à medida que ele atravessava a multidão e subia pela escada estreita por trás do balcão até o patamar, com Louisa sempre a seu lado. As tábuas rangiam sob seus pés. Louisa lançou sobre ele um olhar penetrante. E então seus lábios tremeram. E, para surpresa de Tristran, ela o enlaçou e o abraçou com tanta força que ele não conseguia respirar. Depois, sem dizer mais uma palavra, ela desceu correndo a escada de madeira."

O exemplo mais perfeito que achei de narrativa dissonante. As informações mais jogadas que pedras em doido varrido, em suas frases curtas e diretas, mas que possuem efetividade justamente pelas sensações que as mesmas invocam. Rostos reconhecidos, cumprimentos em silêncio, multidão, escada estreita, tábuas rangindo, olhares penetrantes e lábios tremidos. Uma coisa sustenta a outra, mas não se compensam, justamente pelos efeitos contrastantes. Normalmente essa é uma técnica de introdução, e de uso breve, mas ele a usa para um desfecho (anti-climático, ainda por cima!). Eu quero muito acreditar que o "sem dizer mais uma palavra" tem o segundo sentido de referenciar o próprio narrador quanto ao parágrafo, pois eu posso pelo menos aceitar isso como uma sacanagem cômica/literária.

Eu não vou elencar os pontos positivos e negativos do livro porque não estou encarando o post como recomendação (ou não) do livro, é mais um registro pessoal da minha experiência para futura consulta. Então vou encerrar de repente o meu texto, para dar uma de Neil Gaiman na época que escreveu essa aberração.





PS: Tive raiva também quando o safado encerrou com uma conversinha compreensiva a perseguição da vilã sanguinária aos heróis, mesmo depois de todo o ocorrido, mas pelo menos, a esta altura do livro, houve a jogadinha da "união dos domingos" para dar um toque de inteligência à trama. Já que a vontade de Gaiman era misturar o mundo adulto com o infantil nesse conto de fadas provocativo... Bom, ele teve sucesso: a dicotomia ficou evidente, ficou GRITANTE.




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