segunda-feira, 29 de maio de 2017

Impressões: Madame Bovary, de Gustave Flaubert


Mil anos depois da última resenha, apareço após a leitura de uma dezena de mangás (de One Piece) para redigir mais um texto de impressões. Neste post, retorno aos clássicos para conhecer o trabalho de Gustave Flaubert, em Madame Bovary, um romance amplamente aclamado e até mencionado em certos círculos como o melhor romance de todos os tempos (tendo sido, inclusive, a expressão "bovarismo" criada a partir do livro). Vamos lá, porque já enrolei demais.




"Texto de suma importância, Madame Bovary é uma leitura essencial, sendo considerado um dos melhores romances da literatura, sendo, provavelmente, o melhor dos livros do romance realista de caráter psicológico do século XIX. Para mostrar seu mundo, Flaubert põe em cena uma personagem em total desacordo com sua realidade, com sua posição social e com seu sexo. É nessa personagem que se centrarão as ações desenvolvidas na narrativa e os principais dilemas da obra. O enredo gira em torno de Emma Bovary, casada com o médico Charles. Emma vive imersa na leitura de romances românticos e, por viver um casamento enfadonho, procura no adultério a libertação de seus problemas. A trama possui um desfecho trágico, e da criação de Flaubert partem grandes linhas de força do romance moderno e sua repercussão no contexto literário francês e mundial é intensa e permanente."



Após puxar o saco um pouquinho, a sinopse apresenta o pano de fundo com fidelidade e chega a insinuar o desfecho, algo que afastaria logo de cara alguns leitores que conheço; como o livro tem mais de um século, deixemos o repúdio ao spoiler de lado, até por conta do fundamento que destaca a obra das demais: a profunda beleza da arte literária na construção da realidade. É claro que há toda implicação decorrente do teor do enredo, ainda mais para a sociedade da época, mas não é do meu feitio expor aqui no blog o desenrolar político, social ou autoral dos livros que leio, e dessa forma permanecerei. Me ausentar da discussão mais acalorada sobre o livro, no entanto, não me priva dos melhores predicados da obra. Porque, ainda que a mulher adúltera tenha sido o furor que evidenciou Madame Bovary, foi o próprio talento literário de Flaubert que deu substância ao tema.

Charles e Emma Bovary formam o casal protagonista do livro. Ele, um homem simplório, permanece sempre devotado a uma vida de conforto básico e emprego da vida cotidiana, apresentando um medo constante do que pode se apresentar fora dela. Ela, uma sonhadora, não chega a ser uma pessoa de ambições - o que bastaria para contrastar com o marido - porém nunca deixou de acreditar que fosse merecedora de muito mais, seja no âmbito econômico quanto no afetivo e emocional. Sua reverência aos mundos intensos das histórias de ficção transformou Emma em alguém incapaz de aceitar a realidade que a cercava. Passagens que considero extremamente precisas para delinear as duas personagens, deixo abaixo.


"Acertava sobretudo com os catarros e as doenças de peito. Tendo muito receio de matar os doentes, Charles, realmente, pouco mais receitava do que calmantes, de quando em quando um emético, um escalda-pés ou sanguessugas. Não é que tivesse medo da cirurgia; sangrava abundantemente as pessoas, como se fossem cavalos, e tinha um pulso de ferro para arrancar dentes".

"Contava histórias, dava-lhes novidades, fazia-lhes recados na cidade e, às mais crescidas, emprestava, em segredo, alguns romances que trazia sempre nos bolsos do avental e dos quais ela mesma devorava longos capítulos nos intervalos das suas ocupações. Tratavam só de amores, de amantes, senhoras perseguidas desmaiando em pavilhões solitários, postilhões assassinados em todas as paragens para trocar de animais, cavalos abatidos em todas as páginas, florestas sombrias, perturbações do coração, juramentos, soluços, lágrimas e beijos, barquinhos ao luar, rouxinóis nos bosques, cavalheiros valentes como leões, mansos como cordeiros, mais virtuosos do que aqueles que realmente existem, sempre bem apresentáveis e chorando como urnas".


Sim, as aspirações de Emma são mágicas e desproporcionais, e para enrijecer ainda mais a característica de sonhadora dela, há na primeira parte do livro uma situação de desejo entre ela e León, jovem escriturário da cidadezinha, que não chega a se consumar. Ele parte em busca das oportunidades da cidade grande, deixando seu amor platônico para trás e Emma, que correspondia o sentimento, se viu completamente destruída, de modo que segue uma passagem para exemplificar o seu estado após a partida de León:


"Entretanto, as chamas aplacaram-se, ou porque as reservas por si mesmas se exaurissem, ou porque o amontoamento fosse demasiado grande. O amor extinguiu-se, pouco a pouco, pela ausência e a saudade foi sufocada pelo hábito; aquele clarão de incêndio que lhe tingia de púrpura o céu pálido cobriu-se de mais sombras e extinguiu-se gradualmente".


Os humores de Emma se transformam mediante as expectativas, mais que por qualquer outra coisa. Fosse uma linda história de amor inventada num livro, fosse o próprio amor batendo à sua porta com o nome de León, para ela valia mais o sentimento que ela projetava que propriamente o que acontecia a si. Isso fica bem evidente mais para frente, quando ela se torna adúltera e aquilo a enche de alegria, mas que, com o tempo, mesmo a felicidade afetiva consumada não lhe causa mais impressão, de maneira que sua busca pelo imaginário a impele a forçar uma fuga com Rodolphe, o amante, que imediatamente se dá conta de que estava a lidar com uma biruta.

Mas largando adultérios e desilusões para o lado, passo para o aspecto que mais me abalou no livro: a escrita do autor. Não sendo um autor contemporâneo, há que se observar algumas lombadas, mas em nenhum momento senti o enfado que Balzac algumas vezes me proporcionou, por exemplo. O estilo não se ausenta e nas mais variadas passagens é possível ver o talento absurdo com a prosa literária. Separei um diálogo rápido que encena toda uma situação e uma descrição de um rápido gesto, para que se perceba que na escrita de Flaubert não há percalços. 


"Tem razão - interrompeu o boticário -, há o reverso da medalha! É preciso andar sempre com a mão a segurar a carteira. Em Paris, por exemplo, está-se num jardim público e aparece um fulano, muito apresentável, condecorado até, que se poderia tomar por um diplomata; apresenta-se, estabelece-se a conversação; ele insinua-se, oferece uma pitada, apanha-nos o chapéu que caiu. A gente toma mais confiança, ele leva-nos ao café, convida-nos a ir à sua casa de campo, entre dois cálices apresenta-nos a uma quantidade de pessoas e, durante três quartas partes do tempo, não faz senão explorar-nos a bolsa ou levar-nos a dar passos perniciosos".

"Rodolphe apertava-Lhe a mão e sentia-a muito quente e trémula, como uma rola cativa que quer retomar novamente o voo, mas, ou porque tentasse desprendê-la, ou então porque estivesse correspondendo àquela pressão, ela fez um movimento com os dedos; e ele exclamou: - Oh!, obrigado! Vejo que não me repele! É muito bondosa!"


Ainda que existissem descrições espaciais ou visuais que hora ou outra me deixassem desejoso pelo seu fim, elas não foram desnecessárias, pois concretizaram o cenário e toda a cena narrada. Posso dizer que meu desgosto por elas são mais por questão de eu mesmo não conhecer algumas particularidades de vestimenta ou de estética parisiense da época, e tenho certeza que, para um leitor dedicado a imaginar visualmente a narrativa do livro, elas se provam bastante úteis. E são bem curtas, para dizer a verdade; mas como eu queria dizer algo sobre descrições, fica essa "alfinetada". As descrições psicológicas, que são maioria, eu já nem preciso me esbaldar em elogios, por isso destaco mais uma das percepções de Emma:


"Para Emma, desprendia-se qualquer coisa de vertiginoso daquelas existências amontoadas, inundando-lhe abundantemente o coração, como se as cento e vinte mil almas que ali palpitavam lhe enviassem, todas ao mesmo tempo, o vapor das paixões que ela lhes atribuía. O amor avolumava-se-lhe diante do espaço e enchia-se de tumulto com rumores vagos que subiam".


Eu não consigo pensar em mais o que dizer sobre Madame Bovary. Não vou elencar os pontos que gostei e não gostei, porque o conjunto da obra ficou PERFEITO e, na minha leitura, é indissociável. Deixo aqui para finalizar, um trecho que demonstra a capacidade de sucintez desse mestre da literatura, narrando uma cena de quando Emma resolve chutar o balde e trair a rodo o corno Charles.


"A partir daquele momento, a sua vida não foi mais que uma coleção de mentiras, em que envolvia o seu amor como que em véus, para o esconder. Era uma necessidade, uma mania, um prazer, de tal maneira que, se ela dissesse que passara no dia anterior pelo lado direito de uma rua, tinha de se entender que passara pelo lado esquerdo. Uma manhã em que acabara de sair, segundo o seu costume, com uma roupa bastante leve, começou repentinamente a nevar, e, como Charles estivesse à janela a observar o tempo, viu o padre Bournisien na carruagem do senhor Tuvache, que o ia levar a Ruão. Saiu então a confiar ao eclesiástico um grande xaile para que ele o entregasse a Emma quando chegasse à Cruz Vermelha. Logo que chegou à estalagem, Bournisien perguntou onde estava a mulher do médico de Yonville. A estalajadeira respondeu que ela frequentava muito pouco o seu estabelecimento".


Considerações finais:
Posso contar nos dedos de uma mão, as vezes que terminei algo e quis chamar de OBRA-PRIMA. Madame Bovary foi assim.





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